CATHARINA MINA: UMA LIBERTA AFRICANA EM
SÃO LUÍS NO SÉC. XIX
Iraneide Soares da Silva
Nesta segunda década do século XXI, em que as memórias negras precisam ser (e vem sendo) cada vez mais evidenciadas, fomos buscar nas histórias de mulheres negras que viveram no Brasil dos séculos XVIII e XIX. Mulheres essas que só aparecem de relance na historiografia e que nunca, ou quase nunca, chegaram às salas de aula da Educação Básica ou do Ensino Superior. Nossos achados históricos perpassam seis importantes mulheres negras: Esperança Garcia (1751), Maria Firmina dos Reis (1825), Catharina Rosa Ferreira de Jesus (séc. XIX), Mariana Gonçalves da Luz (1871) e Laura Rosa (1884). Para este artigo, destacamos Catharina Rosa Ferreira de Jesus, ou apenas Catharina Mina.
A cidade de São Luís, entre rios e dentro do mar, forma a ilha de São Luís, território de grande disputa por franceses e portugueses no período colonial, e que se tornou a capital do Maranhão. Como no resto do Brasil, era uma cidade escravista e estava vinculada ao continente africano pelo tráfico atlântico, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII e início do XIX, com a criação e atuação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755). A capital maranhense era um território de estrangeiros, com forte presença de trabalhadores escravizados africanos que chegavam continuamente ao porto, como os do “grupo de procedência” da Costa da Mina, nos atuais Togo, Benim e Nigéria.
Nessas “chegadas” forçadas, conjecturase que Catharina Rosa Pereira de Jesus, a “Catharina Mina”, tenha ancorado no porto de São Luís na primeira metade do século XIX. Sua memória continua presente no centro histórico ludovicense onde há, por exemplo, uma placa que indica o “Beco da Catharina Mina” e, nas proximidades da rua, existe também um empreendimento comercial em sua homenagem, o “Bar da Catharina Mina”, fundado em 1989. Mas quem foi essa mulher? Qual foi sua marca de distinção numa multidão de homens escravizados em província do extremo norte do Império brasileiro?
No tempo presente, ela é caracterizada como uma africana liberta e quituteira. Ressaltase, ainda, a sua beleza e a capacidade de resistir contra o sistema escravista, pois além de sua liberdade, comprou as alforrias de outros escravizados em razão de seus trabalhos e das relações estabelecidas com indivíduos da elite maranhense. Ela também conseguiu ser uma pessoa de influência naquela sociedade. Entretanto, a sua trajetória de vida tem sido pouco divulgada pela historiografia. Com o acesso a documentos sobre sua vida, depositados no Arquivo Público do Tribunal de Justiça do Maranhão (APTJMA), ampliaram-se um pouco mais as informações sobre sua experiência e suas redes de sociabilidade.
Ao analisar as fontes que tratam dessa personagem, encontrou-se a Catharina mulher, não somente a rica ou a boa cozinheira, mas a “Catharina Rosa Pereira de Jesus” que se dizia de “nação Mina”. A escrita do seu testamento, como era comum na época, ficou sob a responsabilidade de alguém da sua confiança. Assim começa a narrativa descrita desse registro: “Eu, Catharina Rosa Ferreira de Jesus achando-me adoentada, mas no meu perfeito juízo e entendimento, tenho resolvido fazer as minhas últimas disposições testamentárias, pelo modo seguinte: Declaro que sou christã e cathólica apostólica romana, da nação Mina”.
Catharina se apresenta como uma mulher africana, de nação Mina, católica, inserida nos padrões da sociedade vigente do final do século XIX, mas com bens, razão pela qual houve a produção do testamento. A narrativa existente é de que ela trabalhou como quituteira desde muito jovem nas ruas de São Luís do Maranhão. Desse comércio urbano, juntou pecúlio para a compra de sua alforria e conseguiu, ao longo do tempo, adquirir alguma riqueza.
Catharina declarou também ser solteira e “sem herdeiro algum necessário, sendo-me, portanto, livre dispor de todos os bens que possuo”. Seguindo a leitura do documento disponível no APTJMA, verifica-se que ela foi mãe e que seu rebento havia falecido. As declarações do testamento, além de revelarem sua vivência na maternidade, estabelecem o desejo de conectarse com seu descendente, pois orientam para que seu corpo fosse enterrado “em catacumba e que findo o prazo de três anos, sejam os meus restos mortais trasladados para o jazido que tenho na igreja de Santo Antônio desta cidade, onde estão os do meu filho Pedro”.
Catharina solicitava um enterro simples e discreto: “[…] quero que o meu enterro e sufrágios se façam a vontade de meus testamenteiros, todavia lhes recomendo que sejam com decência, mas sem pompa, e que no sétimo dia do meu falecimento quero que se diga por minha alma, se distribua a quantia de cinquenta mil reis (50$000) em esmolas e quinhentos reis pelos pobres que comparecerem…”. Catharina não deixou de registrar sua estreita relação com a Igreja Católica e anunciou a distribuição de “esmolas” aos pobres, praticando a caridade, conforme os princípios cristãos. Também conferiu a “plena liberdade a todos os meus escravos sem condição alguma servindo-lhes esta verba de título”.
Com relação aos seus herdeiros e herdeiras, ela disse ter como afilhada “Dona Esmeralda Jaufret, filha do Doutor José Ricardo Jaufret, falecido” e “Meu afilhado Doutor Alfredo Rapozo Barradas, filho do Doutor Desembargador Joaquim da Costa Barradas”. Esses afilhados, pessoas brancas e abastadas, faziam parte das redes de sociabilidade e amizade de Catharina Mina. Ademais, além desses, outros, como amigos e pessoas escravizadas sob sua posse, foram beneficiados com os bens obtidos por seu trabalho como pequena comerciante nas ruas são-luisenses.
Com a análise do testamento de Catharina Mina, compreende-se sua importância na memória da cidade de São Luís, sobretudo por se tratar de uma mulher negra que viveu nos espaços urbanos da capital maranhense em tempos de escravidão, no século XIX, um período marcado por adversidades sociais: pelo racismo, sexismo e discriminações de toda a ordem. Ademais, a história e a memória de Catharina Mina nos faz perceber a dimensão que muitos homens negros e mulheres negras, trabalhadores e trabalhadoras nas mais diversas condições jurídicas, tinham de articulação e, de certa forma, domínio no sentido de conhecimento da dinâmica histórica, cultural e social das cidades escravistas brasileiras.
Enfim, Catharina Mina ultrapassou alguns limites do escravismo, contrariando o pensamento e a cultura da passividade feminina. Nas muitas dinâmicas desses mundos urbanos escravistas nas Américas, mulheres como Catharina Mina abriram brechas e fortaleceram laços a partir de suas vivências socioculturais como trabalhadoras, escravizadas e libertas, nos espaços públicos da cidade, fazendo história e tornando-se referência em uma memória de resistência e luta para as gerações futuras. Nesses espaços, elas fincaram presenças e (re)invenções culturais que atravessaram o tempo. No caso de Catharina Mina, sua trajetória como exescravizada continua sendo relembrada em São Luís, inclusive em decorrência de sua resistência e coragem, fatores que a mantêm viva na memória cotidiana da capital maranhense no século XXI.
Adaptado de:
https://www.geledes.org.br/catharina-mina-uma-libertaafricana-em-sao-luis-no-sec-xix/ Acessado em 20/09/2022
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